Barnabé, Saulo e Marcos, o futuro evangelista, partem de Selêucia, porto de Antioquia. Seu destino é Chipre, ilha situada na rota marítima para a Síria, Ásia Menor e Grécia. Estacionados em Cítium, por muitos dias, aí solucionou Barnabé vários assuntos de seu interesse familiar.
Antes de se retirarem, visitaram a sinagoga, num sábado, com o propósito de iniciar o movimento.
A missão percorreu numerosas localidades, entre vibrações de largas simpatias. Em Amatonte, os mensageiros da Boa Nova demoraram mais de uma semana.
Depois de grandes esforços, chegaram a Nea-Pafos, onde residia o Procônsul Sérgio Paulo.
Saulo e Barnabé foram levados à presença do Procônsul, que os recebeu com muita simpatia, apresentou-lhes um mago judeu de nome Barjesus, e falou com amarga serenidade:
– Senhores, diversos amigos me deram notícia dos vossos êxitos nesta cidade de Nea-Pafos.
Tendes curado moléstias perigosas, devolvido a fé a inúmeros descrentes, consolado míseros sofredores. Há mais de um ano venho cuidando de minha saúde arruinada. Nestas condições, estou quase inutilizado para a vida pública. Há muito contratei os serviços deste vosso conterrâneo, mas os resultados têm sido insignificantes. Mandei chamar-vos, desejoso de experimentar os vossos conhecimentos.
Preocupado com o fascínio que as palavras de Saulo exerciam sobre o romano, e temendo perder tão rico cliente, Barjesus procurou por todas as formas contestar a sua fé.
A polêmica já durava mais de uma hora, quando o mago fez uma alusão mais ferina à personalidade e feitos de Jesus Cristo.
Em atitude mais enérgica, o Apóstolo sentenciou:
– Tudo fiz por convencer-vos, sem demonstrações mais diretas, de maneira a não ferir a parte respeitável de vossas convicções; todavia, estais cego e é nessa condição que podereis enxergar a luz. Como vós, também já vivi em trevas e, no instante do meu encontro pessoal com o Messias, foi necessário que as trevas se adensassem em meu espírito, a fim de que a luz ressurgisse mais brilhante. Tereis igualmente esse benefício. A visão do corpo se fechará, para que possais divisar a verdade em espírito!…
Nesse comenos, Barjesus deu um grito.
– Estou cego!
O Procônsul, porém, vivamente interessado nos fatos intensos daquele dia, chamou os missionários em particular e falou sensibilizado:
– Amigos, eu creio nas verdades divinas que anunciais e desejo, sinceramente, compartilhar do Reino esperado. O ex-rabino sentia-se ditoso, por ter sido auxiliado pelas forças divinas, tornando-se por sua vez o libertador de Sérgio Paulo, escravizado ao sofrimento e às ilusões perigosas do mundo.
Daí por diante, o convertido de Damasco, em memória do inolvidável pregador do Evangelho, que sucumbira a pedradas, em Jerusalém, passou a assinar-se Paulo, até ao fim de seus dias.
A primeira viagem, de Paulo e seus companheiros, não terminou ali. Embarcaram rumo a Panfília, na costa sul da atual Turquia asiática. Dentro de poucos dias, singela embarcação deixava-os em Atália, onde Paulo e Barnabé encontraram singular encanto, nas paisagens que circundavam o Cestro.
Em breve, a missão alugava um barco, largando-se para Perge. Nesta cidade, de regular importância para a região em que se localizava, anunciaram o Evangelho com imensa dedicação.
Plenamente satisfeitos, Saulo e Barnabé resolveram seguir dali para Antioquia de Pisídia. João Marcos, porém, resolveu regressar a Jerusalém.
Apesar dos perigos, dos difíceis caminhos das montanhas, Paulo e Barnabé visitaram Antioquia, Icônio e Listra.
Em Listra, cidade onde residia Timóteo, Paulo cura milagrosamente um coxo. A multidão grita em sua língua: “Os deuses, sob forma humana, desceram entre nós”. Chamam Barnabé de Júpiter e Paulo de Mercúrio, o deus da eloqüência, e dão-lhes um boi ornado de guirlandas, para um sacrifício a ser oferecido junto com todos. Paulo e Barnabé vêem-se obrigados a rasgar as vestes e a invectivar a multidão: “Amigos, por que fazeis isto? Nós também somos homens, de condição igual à vossa…” “A custo”, acrescenta Lucas, “conseguem evitar que o povo lhes oferecesse um sacrifício” (14, 15-18). À euforia do povo seguiu-se a desilusão. Persuadidos pelos judeus de Antioquia e Icônio, os habitantes de Listra voltaram-se contra os missionários. Paulo foi apedrejado e arrastado para os arredores da cidade, onde o deixaram quase morto.
Depois de penosa caminhada, atingiram a cidade de Derbe, onde haveriam de estagiar mais de um ano. Embora entregues ao trabalho manual, com que ganhavam o pão da vida, os dois companheiros precisaram de seis meses para restabelecer a saúde comprometida.
Após muito tempo de labor, resolveram regressar ao núcleo original do seu esforço. Vencendo etapas difíceis, visitaram e encorajaram todos os irmãos escalonados nas diversas regiões da Licaônia, Pisídia e Panfília.
De Perge desceram a Atália, onde embarcaram com destino a Selêucia e dali ganharam Antioquia.
Ambos haviam experimentado a dificuldade dos serviços mais rudes. Muita vez se viram perplexos com os problemas intricados da empresa: em troca da dedicação fraternal, haviam recebido remoques, açoites e acusações pérfidas; contudo, através do abatimento físico e dos gilvazes, irradiavam ondas invisíveis de intenso júbilo espiritual. É que, entre os espinhos da estrada escabrosa, os dois companheiros desassombrados mantinham ereta a cruz divina e consoladora, espalhando, a mancheias, as sementes benditas do Evangelho de Redenção.
Lutas e divergências
Novamente em Antioquia, os dois dedicados missionários chegaram em uma fase de grandes dificuldades para a instituição. Ambos perceberam contristados. As contendas de Jerusalém estendiam-se a toda a comunidade de Antioquia; as lutas pela circuncisão estavam acesas. Os próprios chefes mais eminentes estavam divididos pelas afirmativas dogmáticas. Uns eram partidários da circuncisão obrigatória, outros se batiam pela independência do Evangelho.
Fortemente impressionados com a situação, Paulo e Barnabé combinam um recurso extremo. Deliberaram convidar Simão Pedro para uma visita pessoal à instituição de Antioquia.
Acompanhando Simão, viera João Marcos, que não abandonara, de todo, as atividades evangélicas.
Depois de bem informado da situação religiosa em Antioquia, o ex-pescador acrescentava:
– Em Jerusalém, nossas lutas são as mesmas. De um lado a igreja cheia de necessitados, todos os dias; de outro, as perseguições sem tréguas. No centro de todas as atividades, permanece Tiago com as mais ríspidas exigências. Sabemos que Jesus não deixou uma solução direta ao problema dos incircuncisos, mas ensinou que não será pela carne que atingiremos o Reino, e sim pelo raciocínio e pelo coração. Conhecendo, porém, a atuação do Evangelho na alma popular, o farisaísmo autoritário não nos perde de vista e tudo envida por exterminar a árvore do Evangelho, que vem desabrochando entre os simples e pacíficos. É indispensável, pois, todo o cuidado de nossa parte, a fim de não causarmos prejuízos, de qualquer natureza, à planta divina. A comunidade antioquiana regozijava-se. Os gentios não ocultavam o júbilo que lhes ia n’alma. Em Antioquia, porém, a situação continuou instável. As discussões estéreis permaneciam acessas. A questão ficou sem solução e só seria resolvida em Jerusalém, em assembléia que Simão Pedro prometeu, na primeira oportunidade.
Ao fim de quatro meses, um emissário de Jerusalém trazia a esperada notificação de Pedro, referente à assembléia.
Na manhã imediata, a pequena caravana partiu. Compunham-na Paulo, Barnabé, Tito e mais dois irmãos, que os acompanhavam em caráter de auxiliares.
Chegados ao recinto, o convertido de Damasco experimentou sua primeira decepção. Observando que os representantes de Antioquia se faziam acompanhar por jovem gentio, de nome Tito, Tiago perguntou se o rapaz era circuncidado, ao que Paulo respondeu, com um certo enfado, que não.
–Penso, então, que não será justo admiti-lo na assembléia, visto não ter ainda cumprido todos os preceitos, esclareceu Tiago.
–Apelamos para Simão – disse Paulo, convicto. – Tito é representante de nossa comunidade. Aliás, a reunião deverá resolver estas questões palpitantes, a fim de que se estabeleçam os direitos legítimos dos gentios. Simão, porém, conhecendo ambos os contendores, deu-se pressa em opinar, exclamando em tom conciliador:
–Sim, o assunto será objeto de nosso atencioso exame na assembléia, e, dirigindo, intencionalmente, o olhar ao ex-rabino, prosseguia explicando: – Apelas para mim e aceito o recurso; no entanto, devemos estudar a objeção de Tiago mais detidamente. Trata-se de um chefe dedicado desta casa e não seria justo desprezar-lhe os préstimos. De fato, o conselho discutirá esses casos, mas isso significa que o assunto ainda não está resolvido. Proponho, então, que o irmão Tito seja circuncidado amanhã, para que participe dos debates com a inspiração superior que lhe conheço. E tão só com essa providência, os horizontes ficarão necessariamente aclarados, para tranqüilidade de todos os discípulos do Evangelho. No dia imediato, procedeu-se, solenemente, à circuncisão de Tito, sob a direção cuidadosa de Tiago e com a profunda repugnância de Paulo de Tarso.
As assembléias noturnas continuaram por mais de uma semana. Nas primeiras noites, preparando terreno para advogar abertamente a causa da gentilidade, o ex-pescador de Cafarnaum solicitou aos representantes de Antioquia expusessem a impressão das visitas aos pagãos de Chipre, Panfília, Pisídia e Licaônia. Paulo, fundamente contrariado com as exigências aplicadas a Tito, pediu que Barnabé falasse, em seu nome.
O ex-levita de Chipre fez extenso relato de todos os acontecimentos, provocando imensa surpresa a quantos lhe ouviram as referências ao extraordinário poder do Evangelho, entre aqueles que ainda não haviam esposado uma crença pura. Em seguida, atendendo, ainda, a observações de Paulo, Tito falou, profundamente comovido, interpretando os ensinamentos do Cristo e mostrando possuir formosos dons de profecia, fazendo-se admirar pelo próprio Tiago, que o abraçou mais de uma vez.
Ao termo dos trabalhos, discutia-se, ainda, a obrigatoriedade da circuncisão para os gentios. O ex-rabino seguia os debates, silencioso, admirando o poder de resistência e tolerância de Simão Pedro.
Quando o ex-pescador reconheceu que as divergências prosseguiriam indefinidamente, levantou-se e pediu a palavra, fazendo a generosa e sábia exortação de que os Atos dos Apóstolos (15:7-11) fornecem notícia:
– Irmãos, – começou em atitude enérgica e serena, – bem sabeis que, de há muito, Deus nos elegeu para que os gentios ouvissem as verdades do Evangelho e crescessem no seu Reino. O Pai, que conhece os corações, deu aos circuncisos e aos incircuncisos a palavra do Espírito-Santo. No dia glorioso do Pentecostes as vozes falaram na praça pública de Jerusalém, para os filhos de Israel e dos pagãos. O Todo-Poderoso determinou que as verdades fossem anunciadas indistintamente. Jesus afirmou que os cooperadores do Reino chegariam do Oriente e do Ocidente. Não compreendo tantas controvérsias, quando a situação é tão clara aos nossos olhos. O Mestre exemplificou a necessidade de harmonização constante: palestrava com os doutores do Templo; freqüentava a casa dos publicanos; tinha expressão de bom ânimo para todos os que se baldavam de esperança. Por que motivo devemos guardar uma pretensão de isolamento daqueles que experimentam a necessidade maior? Outro argumento que não devemos esquecer é o da chegada do Evangelho ao mundo, quando já possuíamos a Lei. Se o Mestre no-lo trouxe, amorosamente, com os mais pesados sacrifícios, seria justo enclausurarmo-nos nas tradições convencionais, esquecendo o campo de trabalho? Não mandou o Cristo que pregássemos a Boa Nova a todas as nações? Claro que não podemos desprezar o patrimônio dos israelitas. Temos de amar nos filhos da Lei, que somos nós, a expressão de profundos sofrimentos e de elevadas experiências que nos chegam ao coração através de quantos precederam o Cristo, na tarefa milenar de preservar a fé no Deus único; mas esse reconhecimento deve inclinar nossa alma para o esforço na redenção de todas a criaturas. Abandonar o gentio à própria sorte seria criar duro cativeiro, ao invés de praticar aquele amor que apaga todos os pecados. É pelo fato de muito compreendermos os judeus e de muito estimarmos os preceitos divinos, que precisamos estabelecer a melhor fraternidade com o gentio, convertendo-o em elemento de frutificação divina. Cremos que Deus nos purifica o coração pela fé e não pelas ordenanças do mundo. Se hoje rendemos graças pelo triunfo glorioso do Evangelho, que instituiu a nossa liberdade, como impor aos novos discípulos um jugo que, intimamente, não podemos suportar? Suponho, então, que a circuncisão não deva ser ato obrigatório para quantos se convertam ao amor de Jesus Cristo, e creio que só nos salvaremos pelo favor divino do Mestre, estendido generosamente a nós e a eles também.
A palavra do apóstolo caíra na fervura das opiniões como forte jato de água fria. Paulo estava radiante, ao passo que Tiago não conseguia ocultar o desapontamento.
Terminada a oração, Pedro rogou a Paulo falasse de suas impressões pessoais, a respeito do gentio. Mais esperançado, o ex-rabino tomou a palavra pela primeira vez, no conselho, e convidando Barnabé ao comentário geral, ambos apelaram para que a assembléia concedesse a necessária
independência aos pagãos, no que se referia à circuncisão.
No dia seguinte os trabalhos foram encerrados, lavrando-se as resoluções em pergaminho. Pedro providenciou para que cada irmão levasse consigo uma carta, como prova das deliberações, em virtude da solicitação de Paulo, que desejava exibir o documento como mensagem de emancipação da gentilidade.
Finalmente, tudo ajustado, a missão se dispôs a regressar.