Testemunho em Jerusalém

Jerusalém Torre de David
Jerusalém Torre de David

Envelhecido e alquebrado, o Apóstolo dos gentios contemplou os edifícios de Jerusalém, demorando o olhar na paisagem árida e triste que lhe recordava os anos da mocidade tumultuosa e morta para sempre. Elevou o pensamento a Jesus e pediu-lhe que o inspirasse no cumprimento do sagrado ministério.
O filho de Alfeu começou explicando o motivo de suas graves apreensões. Havia mais de um ano que os rabinos Eliakim e Enoch deliberaram reviver os processos de perseguições iniciados por ele, Paulo, quando da sua movimentada gestão no Sinédrio. Alegaram que o antigo doutor incidira nos sortilégios e feitiçarias da espúria grei, comprometendo a causa do judaísmo, e não era justo continuar tolerando a situação, tão somente porque o doutor tarsense perdera a razão, no caminho de Damasco.
Depois de vários entendimentos com o Sinédrio, por intermédio de amigos influentes no judaísmo, Tiago teve a satisfação de abrandar o rigor das exigências a serem aplicadas no caso dele, Paulo. O ex-doutor de Tarso ficaria com liberdade de agir, poderia continuar propugnando suas convicções íntimas; daria, porém, uma satisfação pública aos preconceitos da raça, atendendo aos quesitos que o Sinédrio lhe apresentaria.
Paulo de Tarso escutava-o extremamente sensibilizado. Dono de luminoso cabedal evangélico, entendia chegado o momento de testemunhar seu devotamento ao Mestre, justamente através do mesmo órgão de perseguição que a sua ignorância engendrara em outros tempos.
Quando o companheiro de Simão fez uma pausa mais longa, o ex-rabino perguntou:
– Que pretendem eles de mim? O filho de Alfeu fixou nele os olhos serenos e explicou:
– Depois de muito relutarem, os israelitas congregados em nossa igreja vão pedir-te, apenas, que pagues as despesas de quatro homens pobres, que fizeram voto de nazireu, comparecendo com eles no templo, durante sete dias consecutivos, para que todo o povo possa ver que continuas bom judeu e leal filho de Abraão… À primeira vista, a demonstração poderá parecer pueril; entretanto, colina, como vês, satisfazer a vaidade farisaica. O comparecimento de Paulo de Tarso no Templo, acompanhando quatro irmãos da raça, em mísero estado de pobreza, a fim de com eles purificar-se e pagar-lhes as despesas do voto, causou enorme sensação em todos os círculos do farisaísmo. Acenderam-se discussões violentas e rudes. Assim que viu o ex-rabino humilhado, o Sinédrio pretendia impor sentenças novas. No segundo dia da santificação, o movimento popular crescera no Templo, em proporções assustadoras. No terceiro dia, à falta de outro pretexto para condenação maior, alguns doutores alegaram que Paulo tinha o atrevimento de se fazer acompanhar por um homem de origem grega, estranho às tradições israelitas. Trófimo nascera em Antioquia, de pais gregos, tendo vivido muitos anos em Éfeso, entretanto conhecia os preceitos do judaísmo e portava-se, nos recintos consagrados ao culto, com inexcedível respeito. As autoridades, contudo, não quiseram ponderar tais particularidades. Era preciso condenar Paulo de Tarso novamente, haviam de fazê-lo a qualquer preço.
O ex-rabino percebeu a trama que se delineava e rogou ao discípulo não mais o acompanhasse ao monte Moria, onde se processavam os serviços religiosos. O ódio farisaico, porém, continuava a fermentar.
Na véspera do último dia da purificação judaica, o convertido de Damasco compareceu às cerimônias com a mesma humildade. Logo, porém, que se colocou em posição de orar, ao lado dos companheiros, alguns exaltados o cercaram com expressões e atitudes ameaçadoras.
– Morte ao desertor!… Pedras à traição! – gritou uma voz estentórica, abalando o recinto. Paulo teve a impressão de que esses brados eram a senha de maiores violências, porque, imediatamente, estourou uma gritaria infernal. Alguns judeus frementes agarraram-no pela gola da túnica, outros lhe travaram os braços, violentamente, arrastando-o para o grande pátio reservado aos movimentos do grande público.
– Pagarás teu crime!… diziam uns. – É necessário que morras! Israel se envergonha de tua presença no mundo! – bradavam outros mais furiosos. O Apóstolo dos gentios entregou-se sem a mínima resistência. Num relance, considerou os objetivos profundos de sua vinda a Jerusalém, concluindo que não fora convocado tão só para a obrigação pueril de acompanhar ao Templo quatro irmãos da raça, desolados na sua ignorância. Cumpria-lhe afirmar, na cidade os rabinos, a firmeza de suas convicções. Entendia, agora, a sutileza das circunstâncias que o conduziam ao testemunho. Primeiramente, a reconciliação e o melhor conhecimento de um companheiro como Tiago, obedecendo a uma determinação que lhe parecera quase infantil; em seguida, o grande ensejo de provar a fé e a consagração de sua alma a Jesus-Cristo. Com enorme surpresa, tomado de profundas e dolorosas reminiscências, notou que os israelitas exaltados deixavam-no à mercê da multidão furiosa, justamente no pátio onde Estevão havia sido apedrejado vinte anos atrás. Alguns populares desvairados arrebataram-no à força, prendendo-o ao tronco dos suplícios. Engolfado nas suas lembranças, o grande Apóstolo mal sentia os bofetões que lhe aplicavam. Rápido, arregimentou as mais singulares reflexões.
Em Jerusalém, o Mestre Divino padecera os martírios mais dolorosos; ali mesmo, o generoso Jeziel se imolara por amor ao Evangelho, sob os golpes e chufas da população. Somente agora, atado ao poste do sacrifício, compreendia a extensão do sofrimento que o fanatismo e a ignorância causavam ao mundo. E refletiu: – O Mestre é o Salvador dos homens e aqui padeceu pela redenção das criaturas. Estevão era seu discípulo, devotado e amoroso, e, aqui experimentou, igualmente, os suplícios da morte. E ele? Não estava ali o passado a reclamar resgates dolorosos? Não seria justo padecer muito, pelo muito que martirizara os outros? Era razoável que sentisse alegria naqueles instantes amargos, não só por tomar a cruz e seguir o Mestre bem amado, como por ter tido o ensejo de sofrer o que Jeziel havia experimentado com grande amargura…
Essas reflexões proporcionavam-lhe algum consolo. A consciência sentia-se mais leve. Ia dar testemunho da fé, em Jerusalém, onde se encontrara com o irmão de Abigail; e, depois da morte, podia aproximar-se do seu coração generoso, falando-lhe com júbilo, dos seus próprios sacrifícios. Pedir-lhe-ia perdão e exaltaria a bondade de Deus, que o conduzira ao mesmo lugar, para os resgates justos…
Mal não saíra de suas reminiscências, quando a primeira pedrada o despertou para escutar o vozerio do povo.
O grande pátio estava repleto de israelitas sanhudos. Objurgatórias sarcásticas cortavam os ares. O espetáculo era o mesmo do dia em que Estevão partira da Terra. Os mesmos impropérios, as fisionomias escarninhas dos verdugos, a mesma frieza implacável dos carrascos do fanatismo. O próprio Paulo não se furtava à admiração, ao verificar as coincidências singulares. As primeiras pedras acertaram-lhe no peito e nos braços, ferindo-o com violência.
Trófimo e Lucas, entretanto, cientes da gravidade da situação, desde os primeiros instantes, através de um amigo que presenciara a cena inicial do suplício, procuraram imediatamente o socorro das autoridades romanas.
Um tribuno militar organizou incontinenti um troço de soldados. Deixando a fortaleza, penetraram no amplo átrio, com ânimo decisivo. A massa delirava num turbilhão de altercações e gritarias ensurdecedoras. Dois centuriões, obedecendo às ordens do comando, avançaram, resolutos desatando o prisioneiro e arrebatando-o à multidão que o disputava ansiosa.
Não encontrando rabinos de responsabilidade para os esclarecimentos imprescindíveis, o tribuno romano mandou que o acusado fosse algemado. O militar estava convencido de que se tratava de perigoso malfeitor que, de há muito se transformara em terrível pesadelo dos habitantes da província.
O peito contuso, ferido no rosto e nos braços, o Apóstolo seguiu para a Torre Antônia, escoltado pelos prepostos de César, enquanto a multidão encaudava o pequeno cortejo, bradando sem cessar: Morra! Morra!.
Ia penetrar o primeiro pátio, da grande fortaleza romana, quando Paulo, compreendendo, afinal, que não fora a Jerusalém tão só para acompanhar quatro nazireus paupérrimos ao monte Moria, e sim para dar um testemunho mais eloqüente do Evangelho, interrogou o tribuno com humildade:
– Permitis, porventura, que voz diga alguma coisa? Percebendo-lhe as maneiras distintas, a nobre inflexão da palavra em puro grego, o chefe da coorte replicou muito admirado:
– Não és tu o bandido egípcio que, há algum tempo organizou a malta de ladrões que devastavam estas paragens? – Não sou ladrão – respondeu Paulo, parecendo uma figura estranha, em vista do sangue que lhe cobria o rosto e a túnica singela – sou cidadão de Tarso e rogo-vos a permissão para falar ao povo. O militar romano ficou boquiaberto com tamanha distinção de gestos e não teve outro recurso senão ceder, embora hesitante.
Sentindo-se num dos seus grandes momentos de testemunho, Paulo de Tarso subiu alguns degraus da escadaria enorme e começou a falar em hebraico, impressionando a multidão com a profunda serenidade e elegância do discurso. Começou explicando suas primeiras lutas, seus remorsos por haver perseguido os discípulos do Mestre Divino; historiou a viagem a Damasco, a infinita bondade de Jesus que lhe permitira a visão gloriosa, dirigindo-lhe palavras de advertência e perdão. Rico das reminiscências de Estevão, falou do erro que havia cometido em consentir na sua morte.
Ouvindo-lhe a palavra cinzelada de misteriosa beleza, Cláudio Lísias, tribuno romano que efetuara a prisão, experimentou sensações indefiníveis. Por sua vez havia recebido certos benefícios daquele Cristo incompreendido a que se referia o orador em circunstâncias tão amargas. Tomando de escrúpulos, mandou chamar Zelfos, de origem egípcia, que adquirira certos títulos romanos, pela expressão de sua enorme fortuna, e solicitou:
– Amigo – disse com voz quase imperceptível – não desejo tomar aqui certas decisões, relativamente ao caso deste homem. A multidão está exaltada e é possível que ocorram acontecimentos muito graves. Desejaria tua cooperação imediata.
– Sem dúvida – respondeu o outro, resoluto. E, enquanto Lísias procurava examinar, de modo minucioso, a figura do Apóstolo, que falava de maneira impressionante, Zelfos desdobrava-se em providências oportunas. Reforçou a guarnição dos soldados, iniciou a formatura de um cordão de isolamento, buscando resguardar o orador de um ataque imprevisto.
Paulo de Tarso, depois de circunstanciado relatório da sua conversão, começou a falar da grandeza do Cristo, das promessas do Evangelho, e, quando se detinha a comentar suas relações com o mundo espiritual, de onde recebia as mensagens confortantes do Mestre, a massa inconsciente, furiosa agitou-se em ânsias mesquinhas. Grande número de israelitas despia o manto, arrojando poeira no ar, num impulso característico de ignorância e maldade. O momento era gravíssimo. Os mais exaltados tentaram romper o cordão dos guardas para trucidar o prisioneiro.
A ação de Zelfos foi rápida. Mandou recolher o Apóstolo ao interior da Torre Antônia. E, enquanto Cláudio Lísias se recolhia à residência, a fim de meditar um pouco na sublimidade dos conceitos ouvidos, o companheiro de milícia tomou providências enérgicas para dispersar os recalcitrantes à pata de cavalo.
Conduzido a uma cela úmida, Paulo sentiu que os soldados o tratavam com a maior desconsideração. As feridas doíam-lhe penosamente. Tinha as pernas doloridas e trôpegas. A túnica estava empapada de sangue. Os guardas impiedosos e irônicos amarraram-no a grossa coluna, conferindo-lhe o tratamento destinado aos criminosos comuns. Sentindo-se exausto e febril, o Apóstolo chegou à conclusão de que não lhe seria fácil resistir à nova provação de martírio. Refletiu que não era justo entregar-se de todo às disposições perversas dos soldados que o guardavam. Recordou a prudência que Pedro e Tiago sempre testemunharam para que as tarefas a eles confiadas não sofressem prejuízos injustificáveis, e, verificando as suas escassas probabilidades de resistência física, naquela hora inesquecível, gritou aos soldados:
– Prendestes-me à coluna reservada aos criminosos, quando não podeis imputar-me falta alguma!… Vejo, agora, que preparais açoites para a flagelação, quando já me encontro banhado em sangue, no suplício imposto pela turba inconsciente… Um dos guardas, um tanto irônico, procurou cortar-lhe a palavra e sentenciou:
– Ora esta!… Não sóis um Apóstolo do Cristo? Consta que teu Mestre morreu na cruz caladinho, e, por fim, ainda pediu perdão para os algozes, alegando que ignoravam o que faziam. Paulo de Tarso, entretanto, evidenciando toda a nobreza do coração, no fulgor do olhar, replicou sem hesitação:
– Sim, rodeado pelo povo ignorante e inconsciente, no dia do Calvário, Jesus pediu a Deus perdoasse as trevas de espírito em que se submergia a multidão que lhe levantara o madeiro de ignomínia; mas, os agentes do governo imperial não podem ser a turba que desconhece os próprios atos. Os soldados de César devem saber o que fazem, porque, se ignorais as leis, para cuja execução recebeis soldo, seria mais justo abandonardes o posto. Os guardas ficaram imóveis, tomados de assombro.
Paulo, entretanto, continuou, em voz firme:
– Quanto a mim, pergunto-vos: – Será lícito açoitardes um cidadão romano, antes de condenado? O centurião que presidia os serviços da flagelação suspendeu os primeiros dispositivos. Zelfos foi chamado com espanto. Ciente do ocorrido, o tribuno interrogou o Apóstolo, sumamente admirado:
– Dize-me. És de fato romano?
– Sim.
Ante a firmeza da resposta, Zelfos achou razoável modificar o tratamento do prisioneiro. Receoso de complicações, ordenou que o ex-rabino fosse retirado do tronco, permitindo-lhe ficar à vontade no acanhado âmbito da cela. Somente, então, Paulo de Tarso conseguiu algum repouso num leito duro, recebendo uma bilha de água trazida com mais respeito e consideração. Saciou a sede intensa e dormiu, apesar das feridas sangrentas e dolorosas.
Zelfos, contudo, não estava tranqüilo. Desconhecia, por completo, a condição do acusado. Temendo complicações prejudiciais para a sua posição, aliás invejável, do ponto de vista político, procurou avistar-se com o tribuno Cláudio Lísias.
Após discutirem o assunto, ponderadamente, resolveram entregar o prisioneiro ao Sinédrio.
E assim foi. Na manhã seguinte, o mais alto tribunal dos israelitas foi notificado pelo tribuno
Cláudio Lísias de que o pregador do Evangelho compareceria perante os juizes para os inquéritos necessários, às primeiras horas da tarde. As autoridades do Sinédrio experimentaram enorme regozijo. Iam, enfim, rever o desertor da Lei, face a face. A notícia foi espalhada com invulgar rapidez.
Paulo, por sua vez, na solidão do cárcere, sentiu-se felicitado com uma grande surpresa, naquela manhã de sombrias perspectivas. É que, com permissão do tribuno, sua irmã Dalila com o sobrinho Estefânio, penetravam a cela, para uma entrevista ligeira. O Apóstolo abraçou a nobre senhora, com lágrimas de emoção. Ela estava alquebrada, envelhecida. O jovem Estefânio tomou as mãos do tio e beijou-as com veneração e ternura. Paulo de Tarso experimentou grande conforto com a sua presença; sobretudo, a inteligência e a vivacidade de Estefânio, na ligeira palestra mantida, proporcionavam-lhe enormes esperanças no futuro espiritual do sobrinho.
Ainda repassava na mente essa grata impressão, quando numerosa escolta se postava junto à cela, para acompanhá-lo ao Sinédrio.
Lido o libelo acusatório, deram a palavra ao Apóstolo para defender-se, em atenção às prerrogativas de nascimento.
Paulo entrou a justificar-se, sumamente respeitoso.
Quando a sua altiloqüente oratória começou a impressionar pela fidelidade do testemunho cristão, o sumo sacerdote lhe impôs silêncio e vociferou enfático:
– Um filho de Israel, ainda que portador de títulos romanos, quando desrespeite as tradições desta casa, com afirmativas injuriosas à memória dos profetas, torna-se passível de severas reprimendas. O acusado parece ignorar o dever de explicar-se, convenientemente, para tresvariar em conceitos sibilinos, próprios da sua desregrada e criminosa obsessão pelo carpinteiro revolucionário de Nazaré! Minha autoridade não permite abusos nos lugares santos. Determino, pois que Paulo de Tarso seja ferido na boca, em desafronta aos seus termos insultuosos. O Apóstolo endereçou-lhe um olhar de serenidade indizível e replicou:
– Sacerdote, vigiai o coração para não incidirdes em repressões injustas. Os homens, como vós, são como as paredes branqueadas dos sepulcros, mas, não devia ignorar que também sereis ferido pela justiça de Deus. Conheço de sobra as leis de que vos tornastes executor. Se aqui permaneceis para julgar, como e porque mandais ferir? Antes, porém, que pudesse prosseguir, um pequeno grupo de prepostos de Ananias avançou com
açoites minúsculos, ferindo-o nos lábios.
– Ousas injuriar o sumo sacerdote? Exclamavam fulos de cólera. Pagarás os insultos!. As lambadas riscavam o rosto rugoso e venerando do ex-rabino, sob os aplausos gerais. Vozes irônicas elevavam-se, incessantes, do seio da turba refece. Uns pediam mais rigor, outros reclamavam o apedrejamento. Generalizou-se o tumulto.
O sumo sacerdote permitira a desordem deliberadamente.
Solicitado pelo tribuno, presente à reunião memorável, Ananias conseguiu restabelecer a calma no ambiente.
Paulo tinha o rosto a sangrar, a túnica em frangalhos; mas, com surpresa e pasmo gerais, revelava no olhar, ao contrário de outros tempos, em circunstâncias dessa natureza, grande tranqüilidade fraternal, dando a entender que compreendia e perdoava os agravos da ignorância.
Supondo-se em posição vantajosa, o sumo sacerdote acentuou em tom arrogante:
– Devias morrer como teu Mestre, numa cruz desprezível! Desertor das tradições sagradas da pátria e blasfemo criminoso, não te basta, por justo castigo, os sofrimentos que começas a experimentar entre os legítimos filhos de Israel? O Apóstolo, no entanto, longe de acovardar-se, replicou, tranqüilamente:
– Juízo apressado o vosso… Não mereço a cruz do Redentor, porque a sua auréola é gloriosa demais para mim; entretanto, os martírios todos, do mundo, seriam justos, aplicados ao pecador que sou. Temeis os sofrimentos porque não conheceis a vida eterna, considerais as provações como quem nada vê além destes efêmeros dias da existência humana. A política mesquinha vos distanciou o Espírito das visões sagradas dos profetas!… Os cristãos, sabei-o, conhecem outra vida espiritual, suas esperanças não repousam em triunfos mendazes que vão apodrecer com o corpo no sepulcro! A vida não é isto que vemos na banalidade de todos os dias terrestres; é antes afirmação de imortalidade gloriosa com Jesus Cristo! A palavra do orador parecia magnetizar, agora, a assembléia em peso. O próprio Ananias, não
obstante a cólera surda, sentia-se incapaz de qualquer reação, como se algo de misterioso o compelisse a ouvir até ao fim. Imperturbável em sua serenidade, Paulo de Tarso prosseguiu:
– Continuai a ferir-me! Escarrai-me na face! Açoitai-me! Esse martirológio me exalta para uma esperança superior, porque já criei, no meu íntimo, um santuário intangível às vossas mãos e onde Jesus há de reinar para sempre. É inútil dividir, fomentar a discórdia, tentar empanar a verdade com as ilusões do mundo. O Evangelho do Cristo é o Sol que ilumina as tradições e os fatos da antiga Lei!… Nesse ínterim, não obstante a estupefação de muitos, estabeleceu-se nova balbúrdia. Um grupo mais exaltado tentava aproximar-se do ex-rabino, disposto a estrangulá-lo.
Foi aí que Cláudio Lísias, apelando para os soldados, fez-se ouvir na assembléia, ameaçando os contendores. Surpreendidos com o fato insólito, porquanto os romanos jamais procuravam intervir em assuntos religiosos da raça, os trêfegos israelitas submeteram-se, imediatamente. O tribuno dirigiu-se, então, a Ananias e reclamou o encerramento dos trabalhos, declarando que o prisioneiro voltaria ao cárcere da Torre Antonia, até que os judeus resolvessem ventilar o caso com mais critério e serenidade.
Experimentando justa simpatia por aquele homem valoroso e sincero, o tribuno tomou novas providencias a seu favor. O ex-doutor da Lei estava mais satisfeito e aliviado. Teve um guarda para atendê-lo em qualquer necessidade, recebeu água em abundancia, remédio, alimentos e a visita dos amigos mais íntimos. Depois de palestrar alguns minutos, com Lucas e Timóteo, sentiu que certas preocupações dolorosas lhe amarguravam o coração. Seria justo pensar numa viagem a Roma, quando seu estado físico era assim precário? Mas, caindo numa espécie de modorra, percebeu, como de outras vezes, que uma viva claridade inundava o cubículo, ao mesmo tempo em que suavíssima voz lhe sussurrava:
– Regozija-se pelas dores que resgatam e iluminam a consciência! Ainda que os sofrimentos se multipliquem, renova os júbilos divinos da esperança!… Guarda o teu bom ânimo, porque assim como testificaste de mim, em Jerusalém, importa que o faças, também, em Roma!… De pronto sentiu que novas forças lhe retemperavam o combalido organismo.
A claridade da manhã surpreendeu-o quase bem disposto.
Nas primeiras horas do dia, Estefânio procurava-o com certa ansiedade. Recebido com afetuoso interesse, o rapaz informou ao tio dos graves projetos que se tramavam na sombra. Os judeus haviam jurado exterminar o convertido de Damasco, ainda que para isso houvessem de assassinar o próprio Cláudio Lísias. O ambiente no Sinédrio era de atividades odiosas. Projetava-se matar o pregador da gentilidade, à plena luz do dia, na próxima sessão do tribunal. Paulo tudo ouviu, e, calmamente, chamando o guarda, disse-lhe:
– Peço-te conduzir este moço à presença do chefe dos tribunos para que ouça sobre um assunto urgente. Assim, Estefânio foi levado a Cláudio Lísias, apresentado-lhe a denúncia. O arguto e nobre patrício, com o tacto político que lhe caracterizava as decisões, prometeu examinar devidamente a questão, sem deixar de presumir a adoção de providências definitivas para burlar a conjuntura.
Na solidão do seu gabinete, o tribuno romano pensou seriamente naquelas perspectivas sombrias. O Sinédrio, na sua capacidade de intrigar, poderia promover manifestações do povo sempre versátil e agressivo. Rabinos apaixonados podiam mobilizar facínoras e quiçá assassiná-lo em condições espetaculares. Ainda bem não conseguira destrinçar as dúvidas para firmar conduta, quando alguém pedia o obséquio de uma entrevista. O visitante inesperado era Tiago, que vinha interpor sua generosa influência em favor do grande amigo de suas edificações evangélicas. O filho de Alfeu repetiu o plano já denunciado por Estefânio, minutos antes.
Maiormente apreensivo, agora, o tribuno ponderou:
– Vossas considerações são justas; entretanto, sinto dificuldades para coordenar providências imediatas. Não será melhor aguardar que os fatos se apresentem e reagir, então, à força com a força? Tiago esboçou um sorriso de dúvidas e sentenciou:
– Sou de parecer que vossa autoridade encontre recursos urgentes. Conheço as paixões judaicas e o furor de suas manifestações. Nunca poderei esquecer o odioso fermento dos fariseus, no dia do Calvário. Se receio pela sorte de Paulo, temo, igualmente, por vós mesmo.
Lísias franziu a testa e refletiu longo tempo. Mas, arrancando-o de sua indecisão, o velho Galileu apresentou-lhe a idéia de transferir o prisioneiro para Cesaréia, tendo em vista um julgamento mais justo. A medida teria a virtude de subtrair o Apóstolo do ambiente irritado de Jerusalém, além disso, o tribuno permaneceria a salvo de suspeitas injustas, mantendo íntegras as tradições de respeito em torno do seu nome, por parte dos judeus malevolentes e ingratos.
Logo que Tiago se despediu, o romano chamou dois auxiliares de confiança e deu as primeiras ordens para a formação da escolta, forte, de cento e trinta soldados, duzentos arqueiros e setenta cavaleiros, sob cuja proteção Paulo de Tarso haveria de comparecer perante o governador Félix.

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