Após a morte de Estevão, Saulo de Tarso conseguiu cartas de habilitação para agir em cooperação com as sinagogas de Damasco e aceitou a companhia de três varões respeitáveis, que se ofereceram a acompanhá-lo na qualidade de servidores muito amigos, e, ao fim de três dias, a pequena caravana se deslocou de Jerusalém para a extensa planície da Síria.
Na véspera da chegada, quase a termo da viagem difícil e penosa, muito distante ainda, a paisagem de Damasco apresentava os seus contornos. Bem montado, evidenciando o aprumo de um homem habituado aos prazeres do esporte, Saulo ia à frente, em atitude dominadora.
Em dado instante, todavia, sente-se envolvido por luzes diferentes da tonalidade solar. Tem a impressão de que o ar se fende como uma cortina, sob pressão invisível e poderosa. Intimamente, considera-se presa de inesperada vertigem, após o esforço mental, persistente e doloroso. Quer voltar-se, pedir o socorro dos companheiros, mas não os vê, apesar da possibilidade de suplicar o auxílio.
– Jacob!… Demétrio!… Socorram-me!… – grita desesperadamente. Mas a confusão dos sentidos lhe tira a noção de equilíbrio e tomba do animal, ao desamparo, sobre a areia ardente. A visão, no entanto, parece dilatar-se ao infinito. Outra luz lhe banha os olhos deslumbrados, e no caminho, que a atmosfera rasgada lhe desvenda, vê surgir a figura de um homem de majestática beleza, dando-lhe a impressão de que descia do céu ao seu encontro. Sua túnica era feita de pontos luminosos, os cabelos tocavam nos ombros, à nazarena, os olhos magnéticos, emanados de simpatia e de amor, iluminando a fisionomia grave e terna, onde pairava uma divina tristeza.
O doutor de Tarso contemplava-o com espanto profundo, e foi quando, numa inflexão de voz inesquecível, o desconhecido se fez ouvir:
– Saulo!… Saulo!… porque me persegues?
O moço tarsense não sabia que estava instintivamente de joelhos. Sem poder definir o que se passava, comprimiu o coração numa atitude desesperada. Incoercível sentimento de veneração apossou-se inteiramente dele. Que significava aquilo? De quem o vulto divino que entrevia no painel do firmamento aberto e cuja presença lhe inundava o coração precípite de emoções desconhecidas?
Enquanto os companheiros cercavam o jovem genuflexo, sem nada ouvirem nem verem, não obstante haverem percebido, a princípio, uma grande luz no alto, Saulo interrogava em voz trêmula e receosa:
– Quem sois vós, Senhor?
Aureolado de uma luz balsâmica e num tom de inconcebível doçura, o Senhor respondeu:
– Eu sou Jesus!…
Então, viu-se o orgulhoso e inflexível doutor da Lei curvar-se para o solo, em pranto convulsivo. Dir-se-ia que o apaixonado rabino de Jerusalém fora ferido de morte, experimentando, num momento, a derrocada de todos os princípios que lhe conformaram o espírito e o nortearam, até então, na vida. Diante dos olhos tinha, agora, e assim, aquele Cristo magnânimo e incompreendido! Os pregadores do “Caminho” não estavam iludidos! A palavra de Estevão era a verdade pura. Aquele era o Messias! A história maravilhosa da sua ressurreição não era um recurso lendário para fortificar as energias do povo. Sim, ele, Saulo, via-o ali no esplendor de suas glórias divinas! E que amor deveria animar-lhe o coração cheio de augusta misericórdia, para vir encontrá-lo nas estradas desertas, a ele Saulo, que se arvorara em perseguidor implacável dos discípulos mais fiéis!… Na expressão de sinceridade da sua alma ardente, considerou tudo isso na fugacidade de um minuto. Experimentou invencível vergonha do seu passado cruel. Uma torrente de lágrimas impetuosas lavava-lhe o coração. Quis falar, penitenciar-se, clamar suas infindas desilusões, protestar fidelidade e dedicação ao Messias de Nazaré, mas a contrição sincera do espírito arrependido e dilacerado embargava-lhe a voz. Foi quando notou que Jesus se aproximava e, contemplando-o carinhosamente, o Mestre tocou-lhe os ombros com ternura, dizendo com inflexão paternal:
– Não recalcitres contra os aguilhões!…
Saulo compreendeu. Desde o primeiro encontro com Estevão, forças profundas o compeliam a cada momento, e em qualquer parte, à meditação dos novos ensinamentos. O Cristo chamara-o por todos os meios e de todos os modos.
Banhado em pranto, como nunca lhe acontecera na vida, fez, ali mesmo, sob o olhar assombrado dos companheiros e ao calor escaldante do meio-dia, a sua primeira profissão de fé.
– Senhor, que queres que eu faça?
Foi aí que Jesus, contemplando-o mais amorosamente e dando-lhe a entender a necessidade de os homens se harmonizarem no trabalho comum da edificação de todos, no amor universal, em seu nome, esclareceu generosamente:
– Levanta-te, Saulo! Entra na cidade e lá te será dito o que te convém fazer!…
Então, o moço tarsense não mais percebeu o vulto amorável, guardando a impressão de estar mergulhado num mar de sombras. Prosternado, continuava chorando, causando piedade aos companheiros. Limpando os olhos chamou um deles com profunda humildade.
– Que aconteceu? – perguntou Jacob preocupado e ansioso. Saulo fez um gesto triste e respondeu: – Estou cego. – Mas que foi? – perguntou o outro inquieto. – Eu vi Jesus Nazareno! – disse contrito, inteiramente modificado. Ante aquela voz humilde e triste, Jacob começou a chorar. Tinha plena convicção de que Saulo enlouquecera.
Chamou os dois companheiros à parte e explicou:
– Vocês voltarão a Jerusalém com a triste nova, enquanto me dirijo à cidade próxima, com o doutor, a providenciar da melhor forma.
Quando as sombras crepusculares se faziam mais densas, os dois homens desconhecidos entravam nos subúrbios da cidade e procuraram por Sadoc, que não os recebeu, em virtude das informações recebidas de Jacob, mas indicou a pensão de Judas, na chamada “Rua Direita”, onde Saulo permaneceu três dias, sem se alimentar. No terceiro dia de preces fervorosas, eis que o hoteleiro anuncia alguém que o procura. Seria Sadoc? Saulo tem sede de uma voz carinhosa e amiga. Manda entrar. Um velhinho de semblante calmo e afetuoso ali está, sem que o convertido possa ver-lhe as cãs respeitáveis e o sorriso generoso.
O mutismo do visitante indicava o desconhecido.
– Quem sois? – pergunta o cego admirado. – Irmão Saulo – replica o interpelado com doçura, – o Senhor, que te apareceu no caminho, enviou-me a esta casa para que tornes a ver e recebas a iluminação do Espírito Santo. Ouvindo-o, o moço de Tarso tateou ansiosamente nas sombras. Quem seria aquele homem que sabia os feitos da estrada! Algum conhecido de Jacob? Mas… aquela inflexão de voz enternecida e carinhosa?
– Vosso nome? – perguntou quase aterrado.
– Ananias.
A resposta era uma revelação. A ovelha perseguida vinha buscar o lobo voraz. Saulo compreendeu a lição que o Cristo lhe ministrava. Tomado de profunda veneração, quis avançar, ajoelhar-se ante o discípulo do Senhor, que lhe chamava ternamente “irmão”, oscular-lhe, enternecido, as mãos benfazejas, mas apenas tateou o vácuo, sem conseguir a execução do gratíssimo desejo. – Quisera beijar vossa túnica – falou com humildade e reconhecimento, – mas, como vedes, estou cego!… – Jesus mandou-me, justamente para que tivesses, de novo, o dom da vista.
Comovidíssimo, o velho discípulo do Senhor notou que o perseguidor cruel dos apóstolos do “Caminho” estava transformado. Ouvindo-lhe a palavra plena de fé, Saulo de Tarso deixava transparecer, no semblante, sinais de profunda alegria interior. Dos olhos ensombrados, manaram lágrimas cristalinas. O moço apaixonado e caprichoso aprendera a ser humano e humilde. – Jesus é o Messias eterno! Depus minha alma em suas mãos!… disse entre compungido e esperançoso.
Penitencio-me do meu caminho!…
Banhado no pranto do arrependimento sincero, sem saber manifestar o reconhecimento daquela hora, em virtude das trevas que lhe dificultavam os passos, ajoelhou-se com humildade.
O velhinho generoso quis adiantar-se, impedir aquele gesto de renúncia suprema, considerando a sua própria condição de homem falível e imperfeito; mas, desejando estimular todos os recursos daquela alma ardente, em favor da sua completa conversão ao Cristo, aproximou-se comovido e, colocando a mão calosa naquela fronte atormentada, exclamou:

– Irmão Saulo, em nome de Deus Todo-poderoso eu te batizo para a nova fé em Cristo Jesus!…
Entre as lágrimas ardentes que corriam dos olhos, o moço tarsense acentuou, contrito:
– Digne-se o Senhor perdoar meus pecados e iluminar meus propósitos para uma vida nova.
– Agora, disse Ananias, impondo-lhe as mãos nos olhos apagados e num gesto amoroso, – em nome do Salvador, peço a Deus para que vejas novamente. – Se for do agrado de Jesus que isso aconteça, advertiu Saulo compungido, ofereço meus olhos aos seus santos serviços, para todo o sempre.
E, como se entrassem em jogo forças poderosas e invisíveis, sentiu que das pálpebras doridas caíam substâncias pesadas como escamas, à proporção que a vista lhe voltava, embebendo-se de luz. Através da janela aberta, viu o céu claro de Damasco, experimentando indefinível ventura naquele oceano de claridades deslumbrantes. A aragem da manhã, com o perfume do Sol, vinha banhar-lhe a fronte, traduzindo para seu coração uma benção de Deus.
– Vejo!… Agora vejo!… Glória ao redentor de minha alma!… – exclamava estendendo os braços num transporte de gratidão e de amor. – Irmão Saulo – disse Ananias pressuroso, – este é o nosso grande dia: abracemo-nos na memória sacrossanta do Mestre que nos irmanou em seu grande amor!… O convertido de Damasco não disse palavra. As lágrimas de gratidão sufocavam-no. Ananias tinha os olhos rasos de pranto. Ele próprio não podia prever as alegrias infinitas que o esperavam na pensão singela da “Rua Direita”. Depois de muito conversarem sobre a personalidade de Jesus, disse o ex-rabino com entusiasmo:
– Ananias meu mestre – onde poderei obter o Evangelho sagrado?
– Antes de tudo, não me chames mestre. Este é e será sempre o Cristo. Nós outros, por acréscimo da misericórdia divina, somos discípulos, irmãos na necessidade e no trabalho redentor. Quanto à aquisição do Evangelho, somente na igreja do “Caminho”, em Jerusalém, poderíamos obter uma cópia integral das anotações de Levi. Verbalmente, tenho de cor quase todos os ensinamentos; mas, no que se refere à parte escrita, tens aqui tudo o que possuo. O moço convertido recebeu as anotações, assaz admirado. Debruçou-se imediatamente sobre os velhos rabiscos e devorava-os com indisfarçável interesse. E, como que já iluminado daquele espírito missionário que lhe assinalou as menores ações, para o resto da vida, ponderava atento:
– Até aqui, ocupava o meu tempo no estudo e na exegese da Lei de Moisés; agora, porém, encherei as horas com o espírito do Cristo. Trabalharei nesse mister até ao fim dos meus dias. Buscarei iniciar meu trabalho aqui mesmo em Damasco.
– Para ser sincero, disse Ananias com a sua experiência dos homens, acho que deves ser muito prudente nesta nova fase religiosa. É possível que teus amigos da sinagoga não estejam preparados para receber a luz da verdade toda. Antes de tudo, procura ajuntar as sementes no seu mealheiro particular, para que o esforço seja profícuo. O homem de vida pura e reta, sem os erros da própria boa intenção, está sempre pronto a plantar o bem e a justiça no roteiro que perlustra; mas aquele que já se enganou, ou que guarda alguma culpa, tem necessidade de testemunhar no sofrimento próprio, antes de ensinar.
Aquelas observações tão sadias e tão mansas penetraram o espírito do ex-rabino como bálsamo de consolação de horizontes mais vastos. Suas palavras carinhosas fizeram-no recordar alguém que o amava muito. De cérebro cansado pelos embates do dia, Saulo esforçava-se por fixar melhor as ideias. Ah!… agora se lembrava perfeitamente. Esse alguém era Gamaliel. Sabia-o em Palmira, na companhia de um irmão. Certamente Gamaliel recebê-lo-ia de braços abertos, regozijar-se-ia com as suas conquistas recentes, dar-lhe-ia conselhos generosos quanto aos rumos a seguir.
Engolfado em recordações cariciosas, agradeceu a Ananias com um olhar significativo, acrescentando sensibilizado:
– Tens razão… Buscarei o deserto em vez de voltar a Jerusalém precipitadamente, sem forças, talvez, para enfrentar a incompreensão dos meus confrades. Tenho um velho amigo em Palmira, que me acolherá de bom grado. Ali repousarei algum tempo, até que possa internar-me pelas regiões ermas, a fim de meditar as lições recebidas.
Ananias aprovou a ideia com um sorriso. Ainda ficaram conversando longo tempo, até que a noite mergulhou a alma das coisas no seu velário de sombras espessas.
O velho pregador conduziu, então, o novo adepto para a humilde reunião que se realizava nesse sábado. Damasco não tinha propriamente uma igreja; entretanto, contava numerosos crentes irmanados pelo ideal religioso do “Caminho”. Ao fim da reunião, Ananias orava fervorosamente. Depois de contar a visão de Saulo e a sua própria, nos comentários daquela noite, pedia ao Salvador protegesse o novo servo em demanda a Palmira, a fim de meditar mais demoradamente na imensidão de suas misericórdias. Consolado e satisfeito de haver encontrado amigos na verdadeira acepção da palavra, Saulo chegou à estalagem de Judas, despedindo-se de todos profundamente comovido.