Nota de Allan Kardec: Em seguida a alguns versículos se acha a tradução literal do texto hebreu, exprimindo mais fielmente o pensamento primitivo. O sentido alegórico ressalta assim mais claramente.
13. Capítulo 2 – 8. Ora, o Senhor Deus plantara desde o começo um jardim de delícias, no qual pôs o homem que ele formara. – 9. O Senhor Deus também fizera sair da terra toda espécie de árvores belas ao olhar e de fruto era agradável ao paladar e, no meio do paraíso, a árvore da vida, com a árvore da ciência do bem e do mal. (Jeová Eloim fez sair da terra (min haadama) toda árvore bela de se ver e boa para se comer e a árvore da vida (vehetz hachayim) no meio do jardim e a árvore da ciência do bem e do mal.)
Nota de Allan Kardec: Paraíso, do latim paradīsus, derivado do grego paradeisos, jardim, pomar, lugar plantado de árvores. O termo hebreu empregado em Gênesis é hagan, que tem a mesma significação.
15. O Senhor tomou, pois, do homem e o colocou no paraíso de delícias, a fim de que o cultivasse e guardasse. – 16. Deu-lhe também essa ordem e lhe disse: “Come de todas as árvores do paraíso.” (Jeová Eloim ordenou ao homem hal haadam dizendo:
De toda árvore do jardim podes comer.) – 17. Mas não comas absolutamente o fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porquanto, logo que o comeres, morrerás com toda a certeza. (E a árvore da ciência do bem e do mal “oumehtz hadaat tob vara” não comerás, pois que no dia em que dela comeres morrerás.)
14. Capítulo 3 – 1. Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais que o Senhor Deus formara na Terra. E ela disse à mulher: “Por que Deus vos ordenou que não comêsseis os frutos de todas as árvores do paraíso?” (E a serpente nâhâsch era mais astuta do que todos os animais terrestres que Jeová Eloim havia feito; ela disse à mulher el haïscha: “Eloim terá dito: ‘Não comereis de nenhuma árvore do jardim?”)
– 2. A mulher respondeu: “Comemos dos frutos de todas as árvores que estão no paraíso.” (Disse ela, a mulher, à serpente: podemos comer do fruto [miperi] das árvores do jardim.) – 3. Mas, quanto ao fruto da árvore que está no meio do paraíso, Deus nos ordenou que não comêssemos dele e que não lhe tocássemos, para que não corramos o perigo de morrer. – 4. A serpente replicou à mulher: “Certamente não morrereis. – 5. Mas é que Deus sabe que, tão logo houverdes comido desse fruto, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal.”
6. A mulher considerou então que o fruto daquela árvore era bom de comer; que era belo e agradável à vista. E, tomando dele, o comeu e o deu a seu marido, que também comeu. (A mulher viu que a árvore era boa como alimento, e que era desejável a árvore para compreender [leaskil], e tomou de seu fruto, etc.)
8. E como ouvissem a voz do Senhor Deus, que passeava à tarde pelo jardim, quando sopra um vento brando, eles se retiraram para o meio das árvores do paraíso, a fim de se ocultarem de diante da sua face.
9. Então o Senhor Deus chamou Adão e lhe disse: “Onde estás?” – 10. Adão lhe respondeu: “Ouvi a tua voz no paraíso e tive medo, porque estava nu, sendo essa a razão por que me escondi.” – 11. O Senhor lhe retrucou: “E como soubestes que estavas nu, senão porque comeste o fruto da árvore da qual eu vos proibi que comêsseis?” – 12. Adão lhe respondeu: “A mulher que me deste por companheira me apresentou o fruto dessa árvore e eu dele comi.” – 13. O Senhor Deus disse à mulher: “Por que fizeste isso?” Ela respondeu: “A serpente me enganou e eu comi desse fruto.”
14. Então, o Senhor Deus disse à serpente: “Por teres feito isso, serás maldita entre todos os animais e todas as bestas da terra; andarás sobre o ventre e comerás terra por todos os dias de tua vida. – 15. Porei uma inimizade entre ti e a mulher, entre a sua raça e a tua. Ela te esmagará a cabeça e tu tentarás morder-lhe o calcanhar.”
16. Deus disse também à mulher: “Afligir-te-ei com muitos males durante a tua gravidez; parirás com dor; estarás sob a dominação de teu marido e ele te dominará.”
17. Disse em seguida a Adão: “Por haveres escutado a voz de tua mulher e teres comido do fruto da árvore de que te proibi que comesses, a terra te será maldita por causa do que fizeste e só com muito trabalho tirarás dela com que te alimentes, durante toda a tua vida. – 18. Ela te produzirá espinhos e sarças e te alimentarás com a erva da terra. – 19. E comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de donde foste tirado, porque és pó e em pó te tornarás.”
20. E Adão deu à sua mulher o nome de Eva, que significa a vida, porque ela era a mãe de todos os viventes.
21. O Senhor Deus também fez para Adão e sua mulher vestidura de peles com que os cobriu. – 22. E disse: “Eis aí Adão feito um de nós, sabendo o bem e o mal.
Impeçamos, pois, agora, que ele deite mão à árvore da vida, que também tome do seu fruto e que, comendo desse fruto, viva eternamente.” (Jeová Eloim disse: “Eis aí, o homem foi como um de nós para o conhecimento do bem e do mal; agora ele pode estender a mão e tomar da árvore da vida [veata pen ischlachyado velakach mehetz hachayim]; comerá dele e viverá eternamente.”)
23. O Senhor Deus o fez sair do jardim de delícias, a fim de que fosse trabalhar no cultivo da terra de onde ele fora tirado. 24. E, tendo-o expulsado, colocou querubins diante do jardim de delícias, os quais faziam luzir uma espada de fogo, para guardarem o caminho que levava à árvore da vida.
Nota de Allan Kardec: Do hebreu cherub, keroub, lavrar; anjos do segundo coro da primeira hierarquia, que eram representados com quatro asas, quatro faces e patas de boi.
15. Sob uma imagem pueril e às vezes ridícula, se nos ativermos à forma, a alegoria oculta frequentemente grandes verdades. À primeira vista, haverá fábula mais absurda do que a de Saturno, o deus que devorava pedras, tomando-as por seus filhos? Entretanto, quanta filosofia e quanta verdade nessa figura, se lhe buscarmos o sentido moral!
Saturno é a personificação do tempo; como todas as coisas são obra do tempo, ele é o pai de tudo o que existe; mas também tudo se destrói com o tempo. Saturno a devorar pedras é o símbolo da destruição, pelo tempo, dos mais duros corpos, seus filhos, visto que se formaram com o tempo. E quem, segundo essa mesma alegoria, escapa a semelhante destruição? Somente Júpiter, símbolo da inteligência superior, do princípio espiritual que é indestrutível. É mesmo tão natural essa imagem que, na linguagem moderna, sem alusão à fábula antiga, se diz, de uma coisa que afinal se deteriorou, ter sido devorada pelo tempo, carcomida, devastada pelo tempo.
Toda a mitologia pagã, aliás, não é mais, na realidade, do que um vasto quadro alegórico das diversas faces, boas e más, da humanidade. Para quem lhe busca o espírito, é um curso completo da mais alta filosofia, como acontece com as fábulas da atualidade. O absurdo estava em tomarem a forma pelo fundo.
16. Dá-se a mesma coisa com a Gênese, na qual se têm que perceber grandes verdades morais debaixo das figuras materiais que, tomadas ao pé da letra, seriam tão absurdas como se, em nossas fábulas, tomássemos em sentido literal as cenas e os diálogos atribuídos aos animais.
Adão é a personificação da humanidade; sua falta individualiza a fraqueza do homem, em quem predominam os instintos materiais a que ele não sabe resistir.
Nota de Allan Kardec: Está hoje perfeitamente reconhecido que a palavra hebreia haadam não é um nome próprio, mas significa: o homem em geral, a Humanidade, o que destrói toda a estrutura levantada sobre a personalidade de Adão.
A árvore, como árvore da vida, é o emblema da vida espiritual; como árvore da Ciência, é o da consciência do bem e do mal, que o homem adquire pelo desenvolvimento da sua inteligência e do livre-arbítrio, em virtude do qual ele escolhe entre um e outro. Assinala o ponto em que a alma do homem, deixando de ser guiada unicamente pelos instintos, toma posse da sua liberdade e incorre na responsabilidade dos seus atos.
O fruto da árvore simboliza o objeto dos desejos materiais do homem; é a alegoria da cobiça e da concupiscência; resume, numa figura única, os motivos de arrastamento ao mal. O comer é sucumbir à tentação.
A árvore se ergue no meio do jardim de delícias para mostrar que a sedução está no seio mesmo dos prazeres e para lembrar que, se o homem der preponderância aos gozos materiais, prender-se-á à Terra e se afastará do seu destino espiritual.
Nota de Allan Kardec: Em nenhum texto o fruto é especializado na maçã, palavra que só se encontra nas versões infantis. O termo do texto hebreu é peri, que tem as mesmas acepções que em francês, sem determinação de espécie e pode ser tomado em sentido material, moral, alegórico, em sentido próprio e figurado. Para os israelitas não há interpretação obrigatória; quando uma palavra tem várias acepções, cada um a entende como quer, contanto que a interpretação não seja contrária à gramática. O termo peri foi traduzido em latim por malum, que se aplica tanto à maçã, como a qualquer outra espécie de frutos. Deriva do grego melon, particípio do verbo melo, interessar, cuidar, atrair.
A morte de que ele é ameaçado, caso transgrida a proibição que lhe é feita, é um aviso das consequências inevitáveis, físicas e morais, decorrentes da violação das leis divinas que Deus lhe gravou na consciência. É bem evidente que aqui não se trata da morte corpórea, pois que, depois de cometida a falta, Adão ainda viveu longo tempo, mas sim da morte espiritual, ou, em outras palavras, a perda dos bens que resultam do adiantamento moral, perda figurada pela sua expulsão do jardim de delícias.
17. A serpente está longe de ser considerada hoje como tipo de astúcia. Ela entra aqui mais pela sua forma do que pelo seu caráter, como alusão à perfídia dos maus conselhos, que se insinuam como a serpente e da qual, por essa razão, muitas vezes o homem nem desconfia. Aliás, se a serpente, por haver enganado a mulher é que foi condenada a rastejar, dever-se-á deduzir que antes esse animal tinha pernas; mas, neste caso, já não era serpente. Por que, então, impor à fé ingênua e crédula das crianças, como verdades, alegorias tão evidentes, e que, falseando o julgamento delas, faz que mais tarde venham a considerar a Bíblia como uma colcha de fábulas absurdas?
Além disso, deve-se notar que o termo hebreu nâhâsch, traduzido por serpente, vem da raiz nâhâsch, que significa: fazer encantamentos, adivinhar as coisas ocultas podendo, pois, significar: encantador, adivinho.
Com esta acepção, ele é encontrado na própria Gênesis, 44: 5 e 15, a propósito da taça que José mandou esconder no saco de Benjamim: “A taça que roubaste é a mesma em que meu Senhor bebe e de que se serve para adivinhar (nâhâsch).
Nota de Allan Kardec: Desse fato se poderá inferir que os egípcios conheciam a mediunidade no copo de água? (Revista Espírita, junho de 1868.)
Ignoras que não há quem me iguale na ciência de adivinhar (nâhâsch)? — No livro Números, 23: 23: Não há encantamentos (nâhâsch) em Jacó, nem adivinhos em Israel. Em consequência, a palavra nâhâsch tomou também a significação de serpente, réptil que os encantadores tinham a pretensão de encantar, ou de que se serviam em seus encantamentos.
A palavra nâhâsch só foi traduzida por serpente na versão dos Setenta — os quais, segundo Hutcheson, corromperam o texto hebreu em muitos lugares — versão essa escrita em grego no segundo século da era cristã. As inexatidões dessa versão resultaram, sem dúvida, das modificações que a língua hebraica sofrera no intervalo transcorrido, visto que o hebreu do tempo de Moisés era uma língua morta, que diferia do hebreu vulgar, tanto quanto o grego antigo e o árabe literário diferem do grego e do árabe modernos.
Nota de Allan Kardec: O termo nâhâsch existia na língua egípcia, com a significação de negro, provavelmente porque os negros tinham o dom dos encantamentos e da adivinhação. Talvez também por isso é que as esfinges, de origem assíria, eram representadas por uma figura de negro.
É, pois, provável que Moisés tenha apresentado como sedutor da mulher o desejo indiscreto de conhecer as coisas ocultas, suscitado pelo espírito de adivinhação, o que concorda com o sentido primitivo da palavra nâhâsch, adivinhar, e, por outro lado, com estas palavras “Deus sabe que, logo que houverdes comido desse fruto, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses. — Ela, a mulher, viu que era cobiçável a árvore para compreender (leaskil) e tomou do seu fruto.” Não se deve esquecer que Moisés queria proscrever de entre os hebreus a arte da adivinhação praticada pelos egípcios, tanto é que proibiu os primeiros de interrogar os mortos e o Espírito Píton. (O céu e o inferno, Primeira Parte, cap. XI.)
18. A passagem que diz: “O Senhor passeava pelo jardim à tarde, quando se levanta vento brando”, é uma imagem ingênua e um tanto pueril, que a crítica não deixou de assinalar; mas nada tem que surpreenda, se nos reportarmos à ideia que os hebreus dos tempos primitivos faziam da Divindade. Para aquelas inteligências limitadas, incapazes de conceber abstrações, Deus havia de ter uma forma concreta e eles referiam tudo à humanidade, como único ponto que conheciam. Por isso Moisés lhes falava como às crianças, por meio de imagens sensíveis. No caso de que se trata era a personificação da Potência Soberana, como os pagãos personificavam, em figuras alegóricas, as virtudes, os vícios e as ideias abstratas. Mais tarde os homens despojaram da forma a ideia, do mesmo modo que a criança, tornada adulta, procura o sentido moral dos contos com que foi acalentada.
Deve-se, portanto, considerar essa passagem como uma alegoria, figurando a Divindade a vigiar em pessoa os objetos da sua criação. O grande rabino Wogue a traduziu assim: “Eles ouviram a voz do Eterno Deus, percorrendo o jardim do lado de onde vem o dia.”
19. Se a falta de Adão consistiu literalmente em ter comido um fruto, ela não poderia de modo algum, pela sua natureza quase pueril, justificar o rigor com que foi punida. Não se poderia tampouco admitir, racionalmente, que o fato seja qual geralmente o supõem; de outro modo Deus, ao considerar irremissível o fato, teria condenado a sua própria obra, já que Ele criara o homem para a propagação. Se Adão houvesse entendido assim a proibição de tocar no fruto da árvore e com ela se houvesse conformado escrupulosamente, onde estaria a humanidade e que teria sido feito dos desígnios do Criador?
Deus não criara Adão e Eva para ficarem sós na Terra; a prova disso está nas próprias palavras que lhes dirige logo depois de os ter formado, quando eles ainda estavam no paraíso terrestre: “Deus os abençoou e lhes disse: Crescei e multiplicai-vos, enchei a Terra e submetei-a ao vosso domínio.” (Gênesis, 1: 28.)
Uma vez que a multiplicação era lei já no paraíso terreno, a expulsão deles dali não pode ter tido como causa o fato suposto.
O que deu crédito a essa suposição foi o sentimento de vergonha que Adão e Eva manifestaram ante o olhar de Deus e que os levou a se ocultarem.
Mas essa própria vergonha é uma figura por comparação: simboliza a confusão que todo culpado experimenta em presença daquele que por ele foi ofendido.
20. Finalmente, qual foi, em suma, a falta tão grande que resultou na condenação perpétua de todos os descendentes daquele que a cometeu?
Caim, o fratricida, não foi tratado tão severamente. Nenhum teólogo a pôde definir logicamente, porque todos, apegados à letra, giraram dentro de um círculo vicioso.
Hoje já sabemos que essa falta não é um ato isolado, pessoal, de um indivíduo, mas que compreende, sob um único fato alegórico, o conjunto das prevaricações de que a humanidade da Terra, ainda imperfeita, pode tornar-se culpada e que se resumem nisto: infração da Lei de Deus. Eis por que a falta do primeiro homem, simbolizando este a humanidade, tem por símbolo um ato de desobediência.
21. Dizendo a Adão que ele tiraria da terra o alimento com o suor de seu rosto, Deus simboliza a obrigação do trabalho; mas por que fez do trabalho uma punição? Que seria da inteligência do homem se ele não a desenvolvesse pelo trabalho? Que seria da Terra se não fosse fecundada, transformada, saneada pelo trabalho inteligente do homem?
Está dito (Gênesis, 2: 5 e 7): “O Senhor Deus ainda não havia feito chover na Terra e não havia nela homens que a cultivassem. O Senhor formou então o homem do limo da terra.” Essas palavras, aproximadas destas outras:
Enchei a Terra, provam que o homem, desde a sua origem, estava destinado a ocupar toda a terra e a cultivá-la; provam, também, que o paraíso não era um lugar circunscrito a um canto do globo. Se a cultura da terra houvesse de ser uma consequência da falta de Adão, resultaria que, se Adão não tivesse pecado, a terra permaneceria inculta e os desígnios de Deus não se teriam cumprido.
Por que Ele disse à mulher que ela pariria com dor, em virtude de haver cometido a falta? Como pode a dor do parto ser um castigo, quando é um efeito do organismo e quando está provado, fisiologicamente, que é uma necessidade? Como pode ser punição uma coisa que se produz segundo as leis da natureza? É o que os teólogos ainda não explicaram, nem poderão explicar enquanto não abandonarem o ponto de vista em que se colocaram. Entretanto, podem justificar-se aquelas palavras que parecem tão contraditórias.
22. Notemos, em primeiro lugar, que se as almas de Adão e Eva tivessem sido tiradas do nada, no exato momento da criação de seus corpos, como ainda se ensina, o casal devia ser inexperiente em todas as coisas; devia, pois, ignorar o que é morrer. Já que os dois estavam sozinhos na Terra, ao menos enquanto viviam no paraíso terrestre, não tinham assistido à morte de ninguém. Como, então, teriam podido compreender em que consistia a ameaça de morte que Deus lhes fazia? Como Eva teria podido compreender que parir com dor seria uma punição, visto que, tendo acabado de nascer para a vida, ela jamais tivera filhos e era a única mulher existente no mundo?
As palavras de Deus, portanto, não deviam ter nenhum sentido para Adão e Eva. Mal surgidos do nada, eles não podiam saber como nem por que haviam surgido ali; não deviam compreender nem o Criador nem o motivo da proibição que lhes era feita. Sem nenhuma experiência das condições da vida, pecaram como crianças que agem sem discernimento, o que torna ainda mais incompreensível a terrível responsabilidade que Deus fez pesar sobre eles e sobre a humanidade inteira.
23. Entretanto, o que constitui para a Teologia um caso sem solução, o Espiritismo o explica sem dificuldade e de maneira racional, pela anterioridade da alma e pela pluralidade das existências, lei sem a qual tudo é mistério e anomalia na vida do homem. Com efeito, admitamos que Adão e Eva já tivessem vivido e tudo logo se justifica: Deus não lhes fala como às crianças, mas como a seres no estado de o compreenderem e que o compreendem, prova evidente de que ambos trazem aquisições anteriores.
Admitamos, além disso, que hajam vivido em um mundo mais adiantado e menos material do que o nosso, em que o trabalho do Espírito substituía o do corpo; que, por se haverem rebelado contra a Lei de Deus, figurada na desobediência, tenham sido afastados de lá e exilados, por punição, para a Terra, no qual o homem, pela natureza do globo, é constrangido a um trabalho corpóreo, e reconheceremos que Deus estava coberto de razão quando lhes disse: “No mundo em que ireis viver doravante, cultivareis a terra e dela tirareis o alimento com o suor do vosso rosto” e, à mulher: “Parirás com dor”, porque tal é a condição desse mundo. (Cap. XI, itens 31 e seguintes.)
O paraíso terrestre, cujos vestígios têm sido inutilmente procurados na Terra era, por conseguinte, a figura do mundo de felicidade onde Adão vivera, ou melhor, onde vivera a raça dos Espíritos que ele personifica. A expulsão do paraíso marca o momento em que esses Espíritos vieram encarnar entre os habitantes do nosso planeta, e a mudança de situação foi a consequência da expulsão. O anjo armado com uma espada flamejante, a defender a entrada do paraíso, simboliza a impossibilidade em que se acham os Espíritos dos mundos inferiores, de penetrar nos mundos superiores, antes que o mereçam pela sua depuração. (Veja-se adiante o cap. XIV, itens 8 e seguintes.)
24. Capítulo 4 – 13. Caim (Depois do assassínio de Abel), responde ao Senhor: “A minha iniquidade é grande demais, para que me possa ser perdoada. – 14. Vós me expulsais hoje de cima da Terra e eu irei me ocultar da vossa face. Serei fugitivo e vagabundo na Terra e qualquer um então que me encontre me matará.” – 15. O Senhor lhe respondeu: “Não, isto não se dará, porquanto, quem matar Caim será punido severamente.” E o Senhor pôs um sinal sobre Caim, a fim de que não o matassem os que viessem a encontrá-lo.
16. Tendo-se retirado de diante do Senhor, Caim ficou errando pela Terra e habitou a região oriental do Éden. – 17. Havendo conhecido sua mulher, ela concebeu e pariu Enoque. Ele construiu (vaïehi bôné; literalmente: estava construindo) uma cidade a que chamou Enoque (Enoquia) do nome de seu filho. (Gênesis, 4: 13 a 17.)
25. Se nos apegarmos à letra de Gênesis, eis as consequências a que chegaremos: Adão e Eva estavam sós no mundo, depois de expulsos do paraíso terrestre; só posteriormente tiveram os dois filhos Caim e Abel.
Ora, tendo-se Caim retirado para outra região depois de haver assassinado o irmão, não tornou mais a ver seus pais, que de novo ficaram isolados.
Só muito mais tarde, na idade de 130 anos, foi que Adão teve um terceiro filho, que se chamou Set, depois desse nascimento ele ainda viveu, segundo a genealogia bíblica, oitocentos anos, e teve mais filhos e filhas.
Quando, pois, Caim foi estabelecer-se a leste do Éden, somente havia na Terra três pessoas: seu pai e sua mãe, e ele, sozinho, de seu lado.
Entretanto, Caim teve mulher e um filho. Que mulher podia ser essa e onde ele pudera desposá-la? O texto hebreu diz: Ele estava construindo uma cidade, e não: ele construiu, o que indica uma ação presente e não posterior.
Mas uma cidade pressupõe a existência de habitantes, visto não ser de presumir que Caim a fizesse para si, sua mulher e seu filho, nem que a pudesse edificar sozinho.
Dessa própria narrativa, portanto, logo se conclui que a região era povoada. Ora, não podia sê-lo pelos descendentes de Adão, que então se reduziam a um só: Caim. Aliás, a presença de outros habitantes ressalta igualmente destas palavras de Caim: “Serei fugitivo e vagabundo e quem quer que me encontre me matará”, e da resposta que Deus lhe deu. Por quem ele temia ser morto e que utilidade teria o sinal que Deus lhe pôs para preservá-lo, visto que ele não encontraria ninguém? Ora, se na Terra havia outros homens além da família de Adão, é que esses homens aí estavam antes dele, de onde se deduz esta consequência, tirada do próprio texto do Gênesis: Adão não é o primeiro, nem o único pai do gênero humano. (Cap. XI, item 34.)
Nota de Allan Kardec: Esta ideia não é nova. La Peyrère, sábio teólogo do século XVII, em seu livro Pré-adamitas, escrito em latim e publicado em 1655, extraiu do texto original da Bíblia, adulterado pelas traduções, a prova evidente de que a Terra era habitada antes da vinda de Adão. Essa é a opinião atual de muitos eclesiásticos esclarecidos.
26. Eram necessários os conhecimentos que o Espiritismo forneceu acerca das relações do princípio espiritual com o princípio material, acerca da natureza da alma, da sua criação em estado de simplicidade e de ignorância, da sua união com o corpo, da sua indefinida marcha progressiva através de sucessivas existências e através dos mundos, que são outros tantos degraus da senda do aperfeiçoamento, acerca da sua gradual libertação da influência da matéria, mediante o uso do livre-arbítrio, da causa dos seus pendores bons ou maus e de suas aptidões, do fenômeno do nascimento e da morte, da situação do Espírito na erraticidade e, finalmente, do futuro como prêmio de seus esforços por se melhorar e da sua perseverança no bem, para que se fizesse luz sobre todas as partes da Gênese espiritual.
Graças a essa luz, o homem sabe doravante de onde vem, para onde vai, por que está na Terra e por que sofre. Sabe que seu futuro está em suas mãos e que a duração do seu cativeiro neste mundo depende unicamente dele. Despida da alegoria acanhada e mesquinha, a Gênese se lhe apresenta grande e digna da majestade, da bondade e da justiça do Criador. Considerada desse ponto de vista, ela confundirá a incredulidade e triunfará.