1. Sendo Deus o princípio de todas as coisas e sendo Todo-sabedoria, Todo-bondade, Todo-justiça, tudo o que dele procede há de participar dos seus atributos, porquanto o que é infinitamente sábio, justo e bom nada pode produzir que seja irracional, mau e injusto. Logo, o mal que observamos não pode ter nele a sua origem.
2. Se o mal estivesse nas atribuições de um ser especial, quer se lhe chame Arimane, quer Satanás, de duas coisas uma: ou ele seria igual a Deus e, por conseguinte, tão poderoso quanto este, e de toda a eternidade como Ele, ou lhe seria inferior.
Nota: Arimã ou Arimane para os seguidores do zoroastrismo, é o nome do senhor das trevas; seus métodos são vis e enganadores, ele corrompe os homens com desejos que os desviam da vida correta. N. E.
No primeiro caso haveria duas potências rivais, incessantemente em luta, cada uma procurando desfazer o que fizesse a outra, contrariando-se mutuamente. Esta hipótese é inconciliável com a unidade de vistas que se revela no ordenamento do universo.
No segundo caso, sendo inferior a Deus, aquele ser lhe estaria subordinado.
Não podendo existir de toda a eternidade como Deus, sem ser igual a este, teria tido um começo. Se ele foi criado, só o poderia ter sido por Deus. Este, então, teria criado o Espírito do mal, o que seria a negação da bondade infinita. (Veja-se O Céu e o Inferno, primeira parte, capítulo IX, Os demônios.)
3. Entretanto, o mal existe e tem uma causa. Os males de toda espécie, físicos ou morais, que afligem a humanidade apresentam duas categorias que importa distinguir: a dos males que o homem pode evitar e a dos que independem da sua vontade. Entre os últimos, é preciso que se incluam os flagelos naturais.
O homem, cujas faculdades são limitadas, não pode penetrar nem abranger o conjunto dos desígnios do Criador; julga as coisas do ponto de vista da sua personalidade, dos interesses artificiais e convencionais que criou para si mesmo e que não se compreendem na ordem da natureza. É por isso que, muitas vezes, se lhe afigura mau e injusto aquilo que consideraria justo e admirável se lhe conhecesse a causa, o objetivo, o resultado definitivo. Pesquisando a razão de ser e a utilidade de cada coisa, reconhecerá que tudo traz o selo da sabedoria infinita e se dobrará a essa sabedoria, mesmo com relação às coisas que não compreende.
4. O homem recebeu em partilha uma inteligência com cujo auxílio lhe é possível conjurar ou, pelo menos, atenuar muito os esforços de todos os flagelos naturais. Quanto mais saber ele adquire e mais se adianta em civilização, tanto menos desastrosos se tornam os flagelos. Com uma organização social sábia e previdente, chegará mesmo a neutralizar as suas consequências, quando não possam ser inteiramente evitados. Assim, mesmo com referência aos flagelos que têm certa utilidade para a ordem geral da natureza e para o futuro, mas que causam danos no presente, Deus facultou ao homem os meios de lhes paralisar os efeitos.
É assim que ele saneia as regiões insalubres, neutraliza os miasmas pestíferos, fertiliza terras incultas e trabalha por preservá-las das inundações; constrói habitações mais salubres, mais sólidas para resistirem aos ventos, tão necessários à depuração da atmosfera, e se coloca ao abrigo das intempéries. É assim, finalmente, que pouco a pouco a necessidade lhe faz criar as ciências, por meio das quais melhora as condições de habitabilidade do globo e aumenta o seu próprio bem-estar.
5. Tendo o homem que progredir, os males aos quais se acha exposto são um estimulante para o exercício da sua inteligência, de todas as suas faculdades físicas e morais, incitando-o a procurar os meios de evitá-los. Se nada tivesse a temer, nenhuma necessidade o induziria a procurar o melhor; seu espírito se entorpeceria na inatividade; nada inventaria nem descobriria.
A dor é o aguilhão que impele o homem para frente, na senda do progresso.
6. Porém, mais numerosos do que os males que o homem não pode evitar são os que ele cria pelos seus próprios vícios, os que provêm do seu orgulho, do seu egoísmo, da sua ambição, da sua cupidez, de seus excessos em tudo. Aí se encontra a causa das guerras e das calamidades que estas acarretam, das dissensões, das injustiças, da opressão do fraco pelo forte, enfim, da maior parte das doenças.
Deus estabeleceu leis plenas de sabedoria, tendo por único objetivo o bem. O homem encontra em si mesmo tudo o que lhe é necessário para cumpri-las. Sua rota está traçada na consciência, e a Lei divina está gravada no coração. Além disso, Deus lhe lembra disso constantemente por intermédio de seus messias e profetas, de todos os Espíritos encarnados que trazem a missão de esclarecê-lo, moralizar e melhorar e, nestes últimos tempos, por uma infinidade de Espíritos desencarnados que se manifestam em toda parte. Se o homem se conformasse rigorosamente com as Leis divinas, certamente evitaria os males mais agudos e viveria feliz na Terra. Se não o faz, é em virtude do seu livre-arbítrio, sofrendo assim as consequências do seu proceder.
(O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. V, itens 4, 5, 6 e seguintes.)
7. Entretanto, Deus, cheio de bondade, pôs o remédio ao lado do mal, isto é, faz que do próprio mal saia o bem. Chega um momento em que o excesso do mal moral se torna intolerável e impõe ao homem a necessidade de mudar de vida. Instruído pela experiência, ele se sente compelido a procurar no bem o remédio de que necessita, sempre por efeito do seu livre-arbítrio. Quando toma melhor caminho, é por sua vontade e porque reconheceu os inconvenientes do outro. A necessidade, pois, o constrange a melhorar-se moralmente, para ser mais feliz, do mesmo modo que o constrangeu a melhorar as condições materiais da sua existência (item 5).
8. Pode-se dizer que o mal é a ausência do bem, como o frio é a ausência do calor. Assim como o frio não é um fluido especial, também o mal não é um atributo distinto; um é a antítese do outro. Onde não existe o bem, forçosamente existe o mal. Não praticar o mal, já é um princípio do bem. Deus somente quer o bem; o mal procede do homem. Se na Criação houvesse um ser preposto ao mal, ninguém o poderia evitar; mas, tendo o homem a causa do mal em si mesmo, e tendo ao mesmo tempo o livre-arbítrio e por guia as Leis divinas, o evitará sempre que o queira.
Tomemos um fato vulgar por termo de comparação. Um proprietário sabe que nos confins de suas terras há um lugar perigoso, onde poderia perecer ou ferir-se quem por lá se aventurasse. Que faz a fim de prevenir os acidentes? Manda colocar perto um aviso, proibindo que prossigam os que ali passem, devido ao perigo. Aí está a lei, que é sábia e previdente. Se, apesar disso, um imprudente desatende o aviso, ultrapassa o ponto permitido e sai-se mal, de quem ele se pode queixar, senão de si mesmo?
Dá-se a mesma coisa com o mal; o homem o evitaria se observasse as Leis divinas. Deus, por exemplo, impôs limite à satisfação das necessidades; o homem é advertido pela saciedade; se ultrapassa esse limite, o faz voluntariamente. As doenças, as enfermidades, a morte que daí podem resultar provêm da sua imprevidência, e não de Deus.
9. Sendo o mal o resultado das imperfeições do homem e, tendo sido este criado por Deus, dir-se-á que Deus não deixa de ter criado, se não o mal, pelo menos a causa do mal. Se Deus houvesse criado perfeito o homem, o mal não existiria. Se o homem tivesse sido criado perfeito, fatalmente penderia para o bem. Ora, em virtude do seu livre-arbítrio, ele não pende fatalmente nem para o bem nem para o mal. Quis Deus que ele ficasse sujeito à lei do progresso e que o progresso fosse fruto do seu próprio trabalho, a fim de que tivesse o mérito deste, da mesma maneira que lhe cabe a responsabilidade do mal que pratique pela própria vontade. A questão, pois, consiste em saber-se qual é, no homem, a origem da sua propensão para o mal.
Nota de Kardec: O erro consiste em pretender-se que a alma tenha saído perfeita das mãos do Criador, quando este, ao contrário, quis que a perfeição fosse resultado da depuração gradual do Espírito e sua própria obra. Quis Deus que a alma, em virtude do seu livre-arbítrio, pudesse optar entre o bem e o mal e chegasse às suas finalidades últimas de forma militante e resistindo ao mal.
Se tivesse criado a alma tão perfeita quanto Ele e, saindo de suas mãos, a houvesse associado à sua beatitude eterna, Deus tê-la-ia feito não à sua imagem, mas semelhante a si próprio. (Bonnamy, juiz de instrução: A razão do Espiritismo, cap. VI.)
10. Estudando-se todas as paixões e, mesmo, todos os vícios, vê-se que as raízes de ambos se acham no instinto de conservação. Esse instinto se encontra em toda a sua força nos animais e nos seres primitivos mais próximos da animalidade, nos quais ele exclusivamente domina, sem o contrapeso do senso moral, por não ter ainda o ser nascido para a vida intelectual. Ao contrário, o instinto se enfraquece à medida que a inteligência se desenvolve, porque esta domina a matéria.
O destino do Espírito é a vida espiritual, porém, nas primeiras fases da sua existência corpórea, só lhe cumpre satisfazer às exigências materiais e, para tal fim, o exercício das paixões constitui uma necessidade para a conservação da espécie e dos indivíduos, materialmente falando. Mas, uma vez saído desse período, outras necessidades se lhe apresentam, a princípio semimorais e semimateriais, depois exclusivamente morais. É então que o Espírito exerce domínio sobre a matéria, sacode-lhe o jugo, avança pela senda providencial e se aproxima do seu destino final. Se, ao contrário, ele se deixa dominar pela matéria, atrasa-se e se identifica com o bruto. Nessa situação, o que era outrora um bem, porque era uma necessidade da sua natureza, transforma-se num mal, não só porque já não constitui uma necessidade, mas porque se torna prejudicial à espiritualização do ser. Muita coisa, que é qualidade na criança, torna-se defeito no adulto. O mal é, pois, relativo, e a responsabilidade e proporcional ao grau de adiantamento.
Todas as paixões têm, portanto, a sua utilidade providencial, pois, se assim não fosse, Deus teria feito coisas inúteis e até nocivas. É o abuso que constitui o mal, e o homem abusa em virtude do seu livre-arbítrio. Mais tarde, esclarecido pelo seu próprio interesse, livremente escolhe entre o bem e o mal.